The Meritocracy Trap, uma crítica à meritocracia, o ideal de justiça das empresas
- VECTOR Consultants - E.Moreno
- 20 de out. de 2021
- 11 min de leitura
Atualizado: 5 de nov. de 2024
Seria mesmo a meritocracia responsável pelas desigualdades sociais?

Diante às tendências sociais emergentes, as companhias estão preocupadas com a imagem e reputação frente a um tema de muita polêmica e contradições que elas estão permanentemente envolvidas: a METERITOCRACIA. Hoje, além de lidar com uma questão de imagem e justeza, e diante do desafio de alcançar sustentabilidade, as empresas precisam transformar os desafios sociais em oportunidades de negócios, desenvolvendo uma cultura de valor social como fonte de diferenciação competitiva e promovendo maior inclusão social.
Assim, entender como e por que a meritocracia é atacada é uma condição essencial no enfrentamento dos desafios corporativos.
Críticas à meritocracia não são novidades e tampouco recentes. Mas tal como cresce os movimentos por mais igualdade social, maior têm sido os ataques. O argumento comum é de que a meritocracia gera desigualdade, em razão de que as oportunidades não são iguais para todos.
É senso comum de que o termo meritocracia - do latim mereo - representa ser digno ou merecedor (de algo), porém, o sentido de dignidade ou de merecimento não responde necessariamente às mesmas expectativas. Há 200 anos, o economista e filósofo italiano Melchiorre Gioja abria o seu tratado “Sobre os méritos e sobre as recompensas” recordando que “as ideias que, na mente dos homens, correspondem à palavra mérito são, como todos sabem, infinitamente diferentes”, conta Luigino Bruni, professor do departamento de jurisprudência, economia, política e línguas modernas da universidade Lumsa, de Roma.
O fato é que a diversidade de opinião tem levado a profundas divergências conceituais até mesmo entre especialistas, com posições em favor ou contra o mérito e à própria meritocracia. Mas a corrente em maior evidência nesses tempos de tendências sociais emergentes tem sido a de que a meritocracia alimenta as desigualdades, portanto não é socialmente vantajosa e muito menos justa.
De modo muito comum, as teses contra a meritocracia remetem a um forte sentido ideológico ou religioso, mesmo que indiretamente, até por que mérito é na sua natureza uma questão ideológica.
Dentre os maiores críticos à meritocracia está Daniel Markovits, professor de Direito na Universidade de Yale e doutor pela Universidade de Oxford, que defende suas posições em seu livro The Meritocracy Trap, com grande repercussão no exterior e agora no Brasil. (A Cilada da Meritocracia – 2021, editora Intrínseca).

Mérito é uma farsa. É assim que o autor começa seu livro.
A obra de Markovits tem chamado atenção não só pelos argumentos bem articulados e profundos, mas principalmente por apontar que a meritocracia não é boa nem mesmo para as classes mais favorecidas e muito menos para os pobres. Argumenta o autor que a meritocracia se caracteriza em um mecanismo de concentração e transmissão dinástica de riqueza e privilégios que, portanto, exclui os mais pobres.
Afirma o autor que a meritocracia é mesmo a ideia comum de que as pessoas devem se destacar "não com base na classe social de seus pais, mas com base em suas próprias conquistas — em quão produtivas e habilidosas elas são". No entanto, assegura que “o problema do mérito na nossa sociedade (se referindo à sociedade americana) é que se tornou um sistema fechado e auto sustentável onde as elites dão educação aos seus filhos de uma maneira que ninguém mais consegue pagar. Aí, as pessoas que têm acesso a essa educação incrível transformam o mercado de trabalho de forma que os trabalhos que pagam os melhores salários são exatamente os que exigem as habilidades que só a educação mais cara proporciona. É um sistema fechado. Não estamos tratando das pessoas que vão bem na escola na maioria da sociedade, estamos falando de quem faz o seu melhor de acordo com um conjunto de padrões construídos especificamente para favorecê-las. É por isso que o mérito é uma farsa”. (BBC Brasil).
O autor enfatiza ainda: “Além de criar um cenário que acirra a luta de classes, esse sistema ainda abre espaço para o surgimento de lideranças populistas, que crescem insuflando o ressentimento de uma grande parcela da sociedade” (Sinopse do livro). Argumenta ainda que “uma sociedade justa e eficiente não faz suas regras e políticas básicas com a exceção em mente, e sim com a maioria das pessoas em mente”. Em razão disso, muitas são as percepções de leitores de que a meritocracia põe em risco a própria Democracia.
Markovits defende posições ainda mais incisivas que se contrapõem às muitas práticas do mundo dos negócios e do capitalismo. Selecionamos oito dos principais pontos:
Flexibilidade no trabalho: “O que os neoliberais chamam de um mercado de trabalho flexível produz desigualdade. É realmente importante para a igualdade que os trabalhadores possam obter treinamento no trabalho e progredir dentro de suas empresas. E, quando você tem um mercado de trabalho flexível, fica muito difícil para que as empresas treinem seus trabalhadores, por que se uma faz isso, um concorrente dela vai contratar essas pessoas treinadas. Então, o que acontece é que ninguém treina e os profissionais que estão na base continuam na base”.
Tecnologia e Inovação: “No capitalismo, a tecnologia tem retirado o emprego de um grande número de trabalhadores de classe média (...) e cria um pequeno número de trabalhadores super qualificados”.
Relações sociais e no trabalho: “A meritocracia é uma força de desigualdade, de subordinação e de estratificação.
Fatalismo e carreira: “Se você não é rico, não vai conseguir ter a melhor educação e será muito difícil entrar na elite por conta própria”.
Mérito na remuneração do trabalho: “As pessoas que são supostamente super qualificadas, com salários enormes, na verdade produzem menos do que recebem. Enquanto isso, trabalhadores supostamente menos qualificados produzem benefícios sociais muito maiores que seus salários. Em geral, você pensa que seu salário é seu mérito, mas é muito confuso e muito injusto”.
Progresso social no capitalismo: “A mobilidade para ascender socialmente se tornou em uma fantasia, e a classe média está mais propensa a afundar na pobreza do proletariado do que a se tornar parte da elite profissional”. “A meritocracia está tornando a desigualdade muito maior do que costumava ser”.
Riqueza e bem-estar: “Os ricos tornam-se uma espécie de mecanismo de sua própria exploração. É claro que eles ficam muito mais ricos com isso, mas não é uma vida divertida, significativa ou cheia de bem-estar. É uma corrida destrutiva, que prejudica até mesmo aqueles que a vencem”.
Justiça social e sistema econômico: “Se você nasceu na classe média e não entrou na universidade ideal ou não conseguiu o melhor trabalho, a razão não tem a ver com você, individualmente, mas tem tudo a ver com estruturas de riqueza, poder e exclusão em uma sociedade meritocrática”.
Daniel Markovits, no entanto, traz outras posições mais alentadoras ou pelo menos menos polêmicas.
Talento e carreira: "A desigualdade que venho descrevendo é sistêmica, estrutural, mas não é absoluta. É sempre possível para as pessoas sair da armadilha caso sejam elas excepcionalmente talentosas ou excepcionalmente sortudas".
Educação como agente de inclusão: “Grandes investimentos públicos em educação e uma série de reformas são necessárias para dificultar que escolas privadas sejam tão exclusivas”.
Meritocracia e classe social: O autor do livro destaca que a meritocracia ajudou a acabar com o poder da aristocracia na maioria das sociedades capitalistas, quando a regra era que as pessoas podiam progredir por seus direitos de origem ou nascença.
Nota: Somente a partir da Revolução Francesa, que instalou o regime republicano, que o mérito passou a ser adotado na governança como algo a ser valorizado ou mesmo a ter prioridade. Retirava-se, assim, o privilégio ou a distinção de pessoa proveniente de uma família nobre ou burguesa, muito embora, sobre-existam nos dias de hoje sociedades onde a aristocracia tem grande influência na ordem social do país.
Ainda de forma corriqueira, faltam aos críticos da meritocracia proposições que ao menos contribuam para uma saída desse estéril aut est aut non est sobre o suposto mito da meritocracia e o que se pode construir como alternativa mais justa e de sentido prático. Ou seja: Se a meritocracia é nociva à sociedade (como defendem os críticos), o que podemos pôr no lugar?
Daniel Markovits pertence ao mesmo grupo, muito embora defenda algumas ideias que possam contribuir para a redução do abismo da desigualdade social. Além da defesa de investimentos nos sistemas de educação, o autor advoga por políticas públicas que façam com que as escolas se tornem mais abertas ou menos exclusivas. Outro ponto defendido está no mercado de trabalho, quando o o autor diz que “é preciso favorecer os trabalhos da classe média, referindo-se à sociedade norte-americana. Isso exige inúmeras políticas diferentes e uma delas são os impostos. Nos EUA, a renda do trabalho da classe média é mais tributada do que qualquer outra renda”. Tal como no Brasil, o sistema tributário nacional onera o trabalho.
Markovits não está só. É extensa a lista de críticos à meritocracia, muitos com posições de acentuada conotação religiosa e/ou ideológica que escapa de uma racionalidade rasa em contraste com as visões mais populares sobre meritocracia, onde a resiliência, mais do que a resistência, é um valor positivo. Selecionamos dois bons exemplos:
“A meritocracia, para além da boa fé dos tantos que a invocam, está se tornando uma legitimação ética da desigualdade”. (Jorge Mario Bergoglio, Papa Francisco).
“A meritocracia como valor universal, fora das condições sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito que serve à reprodução eterna das desigualdades sociais e raciais que caracterizam a nossa sociedade. Portanto, a meritocracia é um mito que precisa ser combatido tanto na teoria quanto na prática (grifo nosso). Não existe nada que justifique essa meritocracia darwinista, que é a lei da sobrevivência do mais forte e que promove constantemente a exclusão de setores da sociedade brasileira. Isso não pode continuar”, defende Sidney Chalhoub, professor titular colaborador do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e docente do Departamento de História da Universidade de Harvard (EUA), em entrevista ao Jornal da Unicamp 07-06-2017.
Os críticos possuem também em comum a ideia de que a meritocracia, para ser válida (e justa) em seus fundamentos de mérito, precisaria se inspirar em princípios de igualdade absoluta, onde todos os cidadãos deveriam ter as mesmas oportunidades. Imaginário de que, por razões da crítica da situação específica de determinados grupos sociais, todas as pessoas envolvidas deveriam entrar no mercado de trabalho em condições igualitárias e dignas de remuneração e de reconhecimento. Por essas razões, “a crítica à meritocracia se fecha sobre si mesma”, como diz Berenice Bento, professora no Departamento de Sociologia da UnB.
Por mais, é difícil de se fazer acreditar que as pessoas desejam que as oportunidades sejam sempre as mesmas para todos, negando-se a elas o direito de escolha com base nas suas próprias necessidades e preferência. As relações sociais não se resumem na ideologia meritocrática da igualdade, se não no reconhecimento de mérito. Há quem busque reconhecimento seus méritos filantrópicos junto à sociedade, como também há aqueles que buscam reconhecimento de seus talentos como asset managers.
Luigino Bruni (ainda) considera como curiosa a ideia difundida no mundo dos negócios de ligação entre meritocracia e economia de mercado. Argumenta que, na realidade, pela tradição liberal, sempre se soube que o mercado não é um lugar meritocrático. Relembrou “que o mercado é antes uma escola de humildade (de pouca valorização) para o ideal meritocrático, pois a recompensa das ações individuais não depende do seu valor intrínseco, mas sim do valor que os outros atribuem aos nossos esforços”. E exemplifica: “Se eu me empenho a produzir coisas que ninguém quer comprar, não poderei invocar meus ‘méritos’ para ter uma recompensa”.
Enfatiza ainda o autor que a meritocracia não é suficiente capaz para reduzir o talento a mérito. “Há, ainda antes, a necessidade da redução dos diversos e muitos méritos das pessoas e dos trabalhadores àqueles pouquíssimos definidos como tais pelas organizações. É a propriedade da empresa que estabelece o que é merecedor e quais méritos a premiar”. Portanto,
o que é mérito está inteiramente submetido aos valores e preceitos morais de quem se coloca como julgador.
Até muito recentemente, o conceito de mérito era visto de forma pejorativo em razão de que as convenções do momento atribuíam a ele o talento e a capacidade racional das pessoas, essa, reconhecida por muitos anos como condição para o sucesso na vida e como vantagem competitiva nos negócios. Medida como “Quociente de Inteligência” (ou simplesmente QI) e fundada na lógica ou mesmo em evidências científicas (como muitos ainda a defendem) a racionalidade se tornou, à época, em um talento digno de mérito.
Hoje sabemos que entre todos os talentos e méritos estão muitas daquelas virtudes das quais dependem o bem-estar e a sobrevivência das empresas e das comunidades humanas. Entre elas, as habilidades interpessoais e de relacionamento, espírito de liderança, autopercepção, empatia, motivação e até mesmo caráter; todas nem sempre garantidas por títulos.
Hoje, habilidades comportamentais são cada vez mais requeridas em um cenário de incertezas e turbulências. Por mais, pesquisas demonstram que 9 em cada 10 profissionais são contratados pelo perfil técnico (hard skil) e demitidos por razões comportamentais (Page Personnel).
Por essa e outras razões, hoje e com maior frequência, as empresas buscam mais profissionais comprometidos com resultados do que formação profissional. Isso não significa que a formação não seja importante na condução de carreira, quando os fundamentos teóricos do mercado, dos negócios e das atividades empresariais são imprescindíveis para a formulação de estratégias de evolução dos negócios. O que muda é a política de atração de talentos, que passa da preferência por profissionais que colecionam diplomas para profissionais que ampliam e aprimoram habilidades e acumulam experiência. “Skill, not degree!”, pedem os líderes globais de negócios. Assim, o fatalismo exposto por Markovits deve ser no mínimo relativizado.
Meritocracia nunca foi sinônimo de pecado para quem se esforça e tampouco é ela responsável pela desigualdade. Se fosse assim, teríamos de baixar a régua para tudo e em níveis rasteiros de educação e de competência (a que ponto?), coisas que sempre impulsionaram a construção de uma sociedade mais próspera e de oportunidades para todos.

Ninguém pode ser culpado pelas conquistas próprias e tampouco pela falta de equidade das empresas nas suas escolhas. Por mais, igualdade nunca foi necessariamente sinônimo de justeza (muito embora os dicionários assim os definem), pois tratar igualmente os diferentes é esperar que todos deveriam ser iguais em seus atributos e, assim, peca-se por não reconhecer que a diversidade cognitiva é uma enorme vantagem competitiva em um mercado cada vez mais complexo e carregado de incertezas. A meritocracia com justeza e equidade é o maior propulsor da inclusão social, em razão de que é o mercado e o capitalismo os geradores de oportunidades, com ela se permite excluir do conceito de mérito os elementos carregados de preconceitos e inteiramente desnecessários ao seu reconhecimento. Não se exige atributos de alguém quando se sabe que uma função de trabalho não os requer. Para os críticos da meritocracia, o corte de inglês fluente, por exemplo, mesmo quando uma função não requer, é uma questão meritocrática.
Há uma forte evidência de que com a política de cotas no Brasil, mais jovens negros começaram a ter acesso à universidade. No entanto, estudos demonstram que o maior desafio desse grupo de graduados é ainda o de se inserir no mercado de trabalho. Pesquisa do Instituto Ethos mostra que apenas 5% dos gestores das 500 maiores empresas do Brasil são negros. Ou seja, a universidade não tem sido suficiente para levar graduados negros à alcançar cargo de mando e gestão nas maiores empresas pois, mesmo a despeito da formação e de atributos das pessoas, "barreiras invisíveis fazem com que elas não são aceitas", defende Fernanda Barbosa Diniz, Procuradora do Trabalho e vice gerente do "Projeto de Inclusão de Jovens Negros e Negras no Mercado de Trabalho", do Ministério Público do Trabalho (Fonte: Estadão, 20-10-2021). "Isso é uma forma da gente quebrar a ideia de meritocracia", conclui a Procuradora. Assim, segue-se a trilha dos críticos de que a meritocracia é a razão das desigualdades e não as "barreiras invisíveis", representadas pelo preconceito e, sobretudo, pela falta de visão das empresas quanto às vantagens de políticas corporativas inclusivas (onde o preconceito é uma barreira e como tal deve ser afastado), como forma de ampliar a diversidade cognitiva, essencial para a inovação e o desenvolvimento dos negócios.
A ideia de que meritocracia é algo selvagem, sem qualquer sentido ético, é um desserviço à inclusão social. Para ser merecedor ou digno de ocupar uma posição de emprego ou mesmo na sociedade, basta atender as qualificações que a posição solicita. Isso implica em equidade. Fazer escolhas em razão de outros atributos não requeridos não é meritocracia, é seleção adversa aos princípios éticos e morais. Ou seja, vocação pela discriminação.
Empresas sustentáveis, com visão de futuro, percebem que transformar os desafios sociais em oportunidades de negócio é garantir uma cultura de valor social como fonte de diferenciação competitiva em beneficio de todas as partes relacionadas.
As críticas à meritocracia aguça uma enorme curiosidade: Sem ela, como seria as relações econômicas e sociais? Qual seria a ideologia que as sustenta, sem considerar as eventuais mensagens subliminares?
A meritocracia, apesar das aparentes e ruidosas críticas, continua soberana e rindo daqueles que supõem que haverá, nos marcos do capitalismo, lugar para todos. (Berenice Bento)
As ponderações são profundas, factuais e realista. Parabéns!